O mês de setembro foi intenso, li e vi muita coisa e pude refletir bastante sobre o papel que a literatura exerce em minha vida. Por que escrever, ler e contar histórias? No final das contas estamos todos em busca de coragem.
Na semana que passou fui assistir A substância no cinema, mas já morrendo de medo. Sabia que era um horror body com duplo o que provavelmente iria disparar em mim ( e em muitos espectadores – especialmente espectadoras - que inclusive saíram da sala de cinema tamanho o desconforto) muita vertigem e uma sensação de inquietação emocional profunda.
Mesmo assim eu fui. Assisti a primeira hora do filme de olhos abertos e depois só escutei. Tapei os olhos com as mãos e apenas fiquei ouvindo os sons de gosma, distorções de áudio e falas exageradamente desvairadas da protagonista que vai entrando em uma espiral de loucura sem fim. Várias vezes pensei em sair também, mas sabia que saísse seria bem pior.
Preciso ir até o fim, repeti mentalmente diversas vezes o meu lema a mim mesma durante mais de duas horas de tortura na sala escura do cinema. Por pior que possa ser a experiência, a ideia de que você é capaz de superar, de sobreviver a um incômodo doloroso de dissociação é o que há de mais valioso nessa vida.
Mas eu sempre fico me perguntando, por que me colocar em situações tão difíceis? Pra que me submeter a tamanho martírio? Por que me meto em tantas tretas? Vale a pena viver um sofrimento tão brutal apenas por um filme? A vida real já não proporciona dor suficiente?
O filme é bom, boa premissa de ficção científica, dirigido de maneira brilhante por Coralie Fargeat que simplesmente arrasou, na minha opinião, em conseguir mostrar o quanto o horror ligado ao controle do corpo feminino pode ser brutal, mas eu detestei o final.
O desfecho é terrível pois acho que reforça o machismo e o patriarcado no final das contas. Não há abertura alguma, pelo menos na minha visão, e isso tem me incomodado muito como leitora e escritora de histórias nos últimos tempos. Eu mesma me vejo escrevendo histórias como essa, fechadas demais, terra arrasada demais.
Acho que o incômodo é mais do que necessário. Apenas o incômodo nos desperta e faz com que possamos olhar para coisas que estão nos torturando, nos aprisionando. Sair da toca é difícil pra caramba mas precisa valer a pena.
O filme narra a história de Elisabeth Sparkle, uma celebridade que vê o único mundo que ela conhece desabar, o mundo em que ela é adorada por sua forma física: ela é uma mulher que ganha a vida com a sua imagem no showbusiness e será substituída por uma candidata mais jovem.
Inconformada, ela recorre a uma substância que lhe permite viver a juventude e a beleza durante 7 dias, os outros 7, velhice novamente. No filme, a protagonista se perde no equilíbrio dos mundos, ela apenas aceita sua forma jovem, uma regra inaceitável no jogo proposto pela lógica da substância.
O problema que vejo no filme de Coralie Fargeat é submeter a nós mulheres a um desconforto na beira do insuportável - o filme é perturbador para além de qualquer coisa que eu já tenha visto na vida! - para não nos recompensar com nada ao final. Isso é terrível. Eu mesma tenho questionado isso em minhas histórias. No que busco como escritora.
Incômodo sim, sempre, mas precisa ficar algo dessa jornada, uma abertura. Nós não podemos nos perder na loucura. Não busco a literatura para ficar confortável. Quando eu leio um livro e percebo que ele não mudou ao menos um pouquinho a minha forma de ver o mundo fico refletindo se o livro não é bom ou se fiz uma leitura superficial ou distraída da obra.
Mudar é muito incômodo, por isso acredito que boas leituras, boas histórias, precisam incomodar, mas incomodar de verdade. Não existe vida verdadeira sem mudança.
Quando eu escrevo e a minha escrita não afeta a maneira como eu me relaciono com o mundo, sinto que não estou criando de verdade, que estou apenas andando em círculos, muito distante do que realmente me interessa no ato de criação que é conseguir sair do lugar, ser nômade.
Isso infelizmente é muito mais comum do que eu gostaria. Escrever coisas que não estão me afetando de verdade, como se estivesse propositalmente me enrolando, fugindo do incômodo de me deslocar. Ler de verdade exige de nós muita coragem, escrever mais ainda.
Escrevo para me mover no mundo de uma maneira diferente, uma forma que não seja apenas girar no meu próprio eixo. É preciso atravessar a fronteira. Lidar com os limites.
Mas devemos atentar para o funcionamento da estética. Na escrita, a beleza usa o limite como vantagem. A experiência ensina, no limite: existe a junção de prazer, risco e dor para quem escreve.
Anne Carson
Eros: o doce-amargo
Escrevo em busca de liberdade. Acho que quase todo escritor no fundo está nessa busca tão difícil que é inventar a sua própria liberdade. A liberdade não tem uma forma, precisamos inventá-la e a escrita ficcional é um via valiosa de invenção de mundos.
Escrever é também torna-se outra coisa que não escritor.
Gilles Deleuze
É sobre essa relação tão intensa entre literatura e vida que ando pensando e tenho lido alguns autores sobre esse tema: Anne Carson, Deleuze e Guattari, Ohan Pamuk, mas hoje queria falar especialmente sobre Rosa Montero e seu O Perigo de estar Lúcida.
Esse livro de Rosa Montero parece inicialmente uma ode sobre como escritores são pessoas loucas, desvairadas. A fantasia do artista louco. No começo até achei que se tratava de uma certa romantização da loucura, e acho que tem um pouco disso também.
Mas no fundo Rosa Montero quer mesmo entender como pessoas corajosas, pessoas que realmente saem da toca, fazem para não enlouquecer. Elas criam, criam o próprio mundo e assim sobrevivem.
Não se trata de sou louco por isso escrevo, acho que é mais um escrevo para não enlouquecer, escrevo para me reinventar nos meus próprios moldes e não, esse novo mundo não é apenas uma alucinação. Ele é sim possível.
Acho que a maioria dos romancistas às vezes tem a consciência de conter multidões […]. Não aderem ao senso comum sobre o que é o eu. Em quase todas as pessoas, os desdobramentos desse tipo podem indicar certa loucura […], mas os escritores de que falo eram pessoas muito eficientes em suas duas encarnações, a de carne e a de papel.
Ursula K. Le Guin
A lucidez incomoda, gera um sofrimento que nem sempre algumas pessoas entendem a dimensão - mesmo especialistas como psicólogos ou psiquiatras -, a dimensão de estar completamente sozinho.
A lucidez é quando você percebe que aquele mundo que criaram pra você e que te faz sofrer tanto não é real. Estar confortável nessa dor é um lugar seguro, conhecido, e por isso preferimos essa a dor a outra: a dor da mudança e da liberdade.
Quando nós entendemos que esse mundo pode ser deformado e recriado entramos na lucidez e esse é um processo difícil, mas plenamente possível. A arte está aí pra isso. Para nos dar a coragem necessária. Todos nós somos capazes de enfrentar a loucura, mas é preciso coragem, coragem de ser singular e de estar de certa maneira sozinho.
Somos animais sociais. A ruptura radical de todo vínculo com os outros é simplesmente insuportável. A loucura te faz acreditar equivocadamente que aquilo que está vivendo só é experimentado por você. Que não há ninguém com quem possa se irmanar. Sentir-se louco é sentir que de algum modo você já não pertence à espécie humana.
O perigo de estar lúcida
Rosa Montero
Ser sozinho e ser multidão. Aí está um belo paradoxo.
Também li esses dias Americanah de Chimamanda Adichie para uma disciplina de Literatura e Filosofia no Doutorado.
Discutimos muito como a protagonista, Ifemelu, que vive uma jornada de fronteira ao sair da Nigéria para ganhar a vida nos Estados Unidos sente a tensão da diferença. Ela se sabe muito diferente como mulher negra não americana em um país que tem como norma o homem branco e passa por uma jornada de adequação violenta para sobreviver.
Ela tem diversos relacionamentos amorosos, com brancos e negros americanos, mas todos são apenas decepções. Ela não consegue se encontrar em um mundo tão diferente.
Achei o livro forte politicamente, a autora cria diversos diálogos entre as personagens com debates políticos interessantes e insere passagens do blog da protagonista com textos potentes sobre a questão da raça com uma pegada bem contemporânea e um tom de ironia que me pareceu típico dos estadunidenses e próprio do que se faz hoje de forma generalizada em redes sociais.
Mas senti muita falta de uma carga ficcional mais densa. Há uma passagem em que uma das amigas de Ifemelu diz abertamente que é impossível escrever uma ficção sobre raça com camadas nos Estados Unidos e um dos namorados de Ifemelu, Blaine, americano e negro, a alerta que a ficção precisa lidar com a fronteira. Ela parece achar que isso é apenas um pedantismo dele que é apenas um acadêmico. Será?
Há também um diálogo interessante em que negros americanos amigos de Ifemelu dizem que ela só consegue escrever o blog daquela maneira pois observa tudo de fora. Ela não faz parte daquele território. Negros americanos conhecem bem o que é permanecer e viver na fronteira.
Isso ficou forte em mim em relação a esse romance da Chimamanda. Ifemelu, nigeriana, negra não americana, não consegue permanecer no limiar. Ela, ao final do épico, encontra sua saída com o retorno ao seu país de origem, a Nigéria, e ao seu amor de infância, Obinze.
No fim, parece uma trama novelesca. Nenhuma das experiências amorosas com a diferença, com o outro fora de sua terra, teve real impacto no processo de negociação de sua identidade que parecia rumar apenas para o retorno ao seu verdadeiro amor e às suas raízes.
Sempre me questiono sobre a capacidade que temos de permanecer na fronteira e prefiro escritores que lidam com isso diretamente. Retornar às origens sempre me parece uma solução romântica.
Não que não possamos ter as nossas raízes, mas acho que precisamos aprender a ser mundo também. Ir e voltar para mundos paralelos: vejo o desvio como uma necessidade para sobreviver. Mas sei o quanto isso pode ser duro e violento, às vezes algo inalcançável.
Por isso em A substância acho que a protagonista se perde, ela não consegue reinventar o seu mundo, o mundo da fronteira, e sucumbe a sua única maneira conhecida de viver, ser um corpo validado pelo olhar masculino, mas, agora na velhice, impossível.
Prefiro ainda acreditar nós somos capazes de muito mais! Precisamos aprender a criar novos mundos, mundos que lidam com o limiar e a viver como nômades que sabem a importância de fazer a travessia.
Obrigada por ler até aqui!!❤️✨️
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Beijos e até a próxima edição⭐✨️,
Thais
Olá Thais, gostei do texto e faz parte da minha lista de leitura aqui na escola em que trabalho o Americanah de Chimamanda Adichie.
E, lendo seu texto pensei no quanto nos escondemos da fronteira. No quanto precisamos atravessa-lá e escrever nossas histórias com esse olhar de atravessamento. Fugir do medo de escrever além do limiar, escrever ficção de fronteira, numa fronteira de nós mesmos, da fronteira de nossos medos. Não sei se me fiz entender, pois me pego pensando neste tipo de fronteira quando escrevo. No choque que ao ler textos que abraçam a fronteira. Um abraço.