Bem-vindos à era do conteúdo artificial!
Narrador não confiável, deep fake e alucinação da IA: tudo isso é ficção e é real👁️
Semana passada a internet foi sacudida pela propaganda da Volkswagen que resgatou a nossa querida Elis Regina para vender o seu mais novo carro elétrico.
Eu quando assisti chorei. Chorei de tristeza ao ouvir a música que marcou a minha juventude ter o seu sentido completamente deturpado, rasgado e desrespeitado. Chorei ao ver a imagem da Elis ali associada a um futuro que ela jamais desejou.
A polêmica foi grande, mas independente se você está entre aqueles que amaram a propaganda ou questionaram o uso da imagem da cantora para propagar valores com as quais ela jamais compactuaria, o fato é que todos ficaram perplexos em perceber como personagens artificiais já dominam o nosso imaginário e as nossas rotinas.

A inteligência artificial chegou de vez! Não estamos mais falando sobre uma hipótese, uma especulação. Ela chegou, o robô está ao nosso lado, tomando café conosco, fazendo a nossa lista de supermercado, entretendo os nossos filhos e nos lembrando a data de aniversário das pessoas que amamos.
E essa IA que está em nosso cotidiano, curadora e geradora de conteúdo artificial, irá balançar, como nunca vimos antes, as noções sobre o que é real e o que é ficção.
Mas você pode me questionar. Ah, mas essa relatividade é a grande característica da pós-modernidade! Tudo é relativo, a verdade é apenas um ponto de vista, e eu só vou poder concordar com essa afirmação — mas apenas em parte.
Estamos esquecendo que mesmo a verdade sendo relativa, isso não significa a total aleatoriedade. Isso seria a falência da construção de um laço social.
Para mim uma sociedade, uma comunidade, deve ser feita a partir de um pacto de valores comuns, ainda que eles estejam sempre em movimento, sendo debatidos de maneira conjunta, com respeito pelo Outro. E, diferente do que acontece nas redes sociais, pensados e refletidos com calma, e tempo, partindo de contextos construídos historicamente.
A inteligência artificial é justamente o oposto disso – ressalto aqui que estou falando dessa IA criada pelo capitalismo, pois podemos até pensar que ela poderia ser outra coisa. Falei mais sobre isso aqui.
Essa IA que está entre nós cria deep fakes, resgatando o rosto e a memória de pessoas importantes e queridas, e as ressuscitam para vender produtos num ritmo alucinante.
O conteúdo delira, mas delira com um propósito: vender!
Ela dissimula tudo com um objetivo bem claro: vender!
A inteligência artificial do nosso tempo é por excelência um ser que alucina, pois suas informações sintéticas nunca partem de uma experiência vivida, mas de suposições feitas a partir de dados coletados por meio de um treinamento.
E, claro, há alguém que as treina: seus criadores. E alguém que as utiliza.
Aqui uma explicação bem didática sobre como esse treinamento funciona e o que é uma alucinação de uma IA, do Diogo Cortiz, cientista cognitivo.
No geral ela diz algo que poderia ter acontecido, mas que não necessariamente aconteceu. Parece confuso, né?
Mas a literatura já atravessou bem essa questão.
Sabe aquela história, traiu ou não traiu? Então, nunca vamos saber! Pois é justamente essa dúvida o efeito estético criado pelo narrador não confiável do genial Machado de Assis em Dom Casmurro.
Gosto muito da definição de Lodge sobre esse tipo de narrador:
Os narradores não confiáveis servem para revelar a lacuna entre as aparências e a realidade e mostrar como os seres humanos distorcem e ocultam esta última.
A arte da ficção, David Lodge
A questão é que na literatura esse narrador visa refletir sobre como um humano, bem real, pode perceber a realidade de diferentes pontos de vista a depender da sua EXPERIÊNCIA!
Porém, quando uma IA se torna um narrador não confiável é com um propósito bem real: reter a nossa atenção e manipular a nossa reação sobre um acontecimento.
Aqui um episódio sobre narradores não confiáveis e como nascem as fake news da Rádio Novelo.
Quem está contando a história? Essa pergunta faz toda a diferença, não acha?
Mas não podemos esquecer que na ficção há uma distinção estética entre narrador, autor implícito e autor real. Logo, a pergunta sobre quem narra ganha camadas e essa divisão nem sempre está presente em narrativas não ficcionais. E nem deveria!
No caso de conteúdos criados por IAs que sintetizam e simulam a voz, imagem e até o estilo de fala e pensamento de alguém para gerar fakes elas o fazem para obter o que desejam seus criadores: a nossa atenção! Ou, na melhor linguagem de marketing, engajamento. Storytelling para vender.
As IAs são ferramentas do capitalismo, não podemos perder isso de vista!
Átila Iamarino fala sobre como a IAs produzidas pelas empresas do Vale já manipulam a minha e a sua vida.
Na última semana, o genial neurocientista Miguel Nicolelis explicou de forma bem-humorada e direta por que as IAs que conhecemos são apenas ferramentas de marketing. Adorei a parte em que o entrevistador o provoca, perguntando se as IAs não passam de papagaios estatísticos. Vale conferir!
No meu romance de estreia quis explorar a possibilidade de pensar uma IA como um narrador não confiável e me inspirei muito nos narradores geniais dos romances de Kazuo Ishiguro, um mestre quando o assunto é torcer a visão de mundo de um narrador.
Em Klara e o Sol, Ishiguro cria uma robô que narra em primeira pessoa para pensar o medo — e a relação ambivalente — que temos de ser substituído por máquinas em nossos afetos.
Em Meio-Norte 2B84, a minha personagem, uma Inteligência Artificial doméstica, narra sua própria história de formação de uma maneira escorregadia e alucinada.
Para mim a questão era: vivemos na era da memória artificial, feita de dados de dados de dados?
Se você quiser conhecer mais dessa história ou trocar uma ideia sobre esse tema é só me chamar na rede ao lado do tio Zuck ou mesmo comentar por aqui. ;)
Vou adorar conversar com você! Instagram @thaisliteratura
Nunca é demais dizer que este conteúdo não foi criado por um robô!🌝
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Os livros que inspiraram esse post!
👁️ A arte da ficção, David Lodge
👁️ Klara e o Sol, Kazuo Ishiguro
👁️ Dom Casmurro, Machado de Assis
👁️ Meio-Norte 2B84, Thais Nunes
Compartilhando leituras
👁️Li Kindred, de Octavia Butler e compartilhei minhas impressões;
👁️ Também conheci a história da arqueóloga franco-sertaneja Niéde Guidon na excelente biografia de Adriana Abujamra;
👁️ Lendo Memorial de Aires, de Machado de Assis, para pensar em escrita de diários;
👁️ Comecei a leitura de Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, de Philip K Dick! Depois conto mais! ;)
Obrigada pela leitura!❤️
Um beijo e até a próxima edição! ;)
Thais
Excelente abordagem, Thais! 😍 Por coincidência (ou não), assim que comecei a leitura do seu Meio-Norte 2B84, logo me ocorreu o romance Klara e o Sol, do Kazuo Ishiguro. Embora bastante distintos em seus estilos e singularidades, percebo uma sintonia entre as suas perspectivas. Um mesmo olhar, aguçado e crítico, sobre esse controverso mundo novo - talvez mais próximo dos nossos dias do que desejaríamos.