Distopia, delírio e catástrofe climática em Gelo, de Anna Kavan
Sabe aquela obra literária que te deixa durante dias incapaz de partir para a próxima leitura?
É a tal da ressaca literária, rs! Para mim esse tempo de descanso entre uma leitura e outra significa um momento para pensar, refletir sobre o que eu li…
É um alívio, em meio a tanta velocidade, correria, uma avalanche de notícias desanimadoras, você perceber que uma obra da literatura pode te fazer parar para simplesmente pensar…
Gelo foi uma leitura tão impactante que me deixou durantes dias conectada com o universo delirante de Anna Kavan. Um delírio necessário.
Mais uma escritora genial apagada pela história, mas que agora é resgatada, gerando grande interesse pela força singular de sua literatura em apontar caminhos para repensar o fim do mundo!
Brian Aldiss chamou Gelo de Anna Kavan de ficção científica. Uma prosa que ecoa imagens da literatura popular, com cenas de guerra, agitação civil e disfunção social coletiva, pode sim ser considerada um texto impressionante e visceral de ficcção especulativa, por que não? 👁️
Mas Gelo também avança para além das amarras do gênero da literatura distópica, navegando pela prosa experimental e por técnicas sofisticadas do estilo gótico, com uma clara influência de Franz Kafka.
Porém, cria um caminho próprio para pensar a temática da opressão e poder: uma prosa feminista intimamente ligada a questões da catástrofe climática.🌱
Por meio de um jogo de fragmentação e deslocamento entre mundo subjetivo e mundo objetivo e uma complexa torção na linguagem, a escrita de Kavan une uma literatura de grandes temas com um estilo intimista.
A autora parece jogar com uma questão muito contemporânea: sabemos que a destruição ambiental chegou em proporções assustadoras, nós estamos vendo, nós temos comprovações científicas objetivas, mas no campo subjetivo preferimos ignorar!
Em Kavan o fim do mundo se torna um delírio!❄️❄️❄️
Na época em que escreveu Gelo, Kavan tinha consciência de que sua prosa experimental e sua estranha literatura jamais teria chance alguma de publicação.
“Meu tipo de escrita experimental está bem desprestigiado nas atuais circunstâncias, então o melhor é me resignar ao fato de que, como escritora, estou simplesmente liquidada até depois do fim da guerra — senão para sempre” Anna Kavan
A história de Gelo é minimalista.📖❄️
Em um mundo congelado e em desmoronamento, sem nenhuma saída aparente, o narrador – sem nome ou tipo físico claro, com status de abstração, como os personagens de Kafka – quer tomar posse da garota, uma personagem também não nomeada, mas que se confunde com a própria paisagem gélida e monstruosa, considerando que é sempre descrita em sua fragilidade quebradiça, como um cristal de gelo, as unhas e mãos finas e alongadas, a pele branquíssima e o cabelo louro.
A garota é posse do guardião, um personagem também abstrato, fazendo-a refém e vítima de diversos abusos sexuais.
No entanto, esse aparente triângulo amoroso - em que poderíamos acreditar que o narrador quer salvar a garota das mãos terríveis do tal guardião - é na verdade intensamente deslocado na narrativa de Kavan.
Por vezes, o narrador, um narrador não-confiável, tem um prazer sádico em ver a garota ser abusada pelo guardião, momentos da narrativa em que a primeira pessoa é deslocada para uma onisciência absoluta, mudança de ponto de vista com um efeito impressionante de fragmentação.
“eu mesmo devia ter provocado a fratura com amor atencioso; eu era a única pessoa com direito a infligir dor. Me inclinei para a frente e toquei sua pele fria.” Gelo, Anna Kavan
A garota também não é simplesmente uma vítima. Com status paradoxal de fragilidade e monstruosidade, ela representa fascínio, medo, força e resignação
“Havia algo nela que exigia vitimização e terror, então ela corrompeu meus sonhos, me levou a um lugar escuro que eu não tinha vontade de explorar. Já não sabia mais qual de nós era a vítima. Talvez fôssemos vítimas um do outro.” Gelo, Anna Kavan
O que esse delírio fantástico de Kavan poderia significar? 💭
Independente das diversas interpretações possíveis, a narrativa por si só, ampla de sensações e movimentações sinistras, tem sua força estética e artística resguardada apenas pelo estilo meticuloso e compacto de Anna Kavan.📖
Kavan é habilidosa em manejar recursos góticos e de horror de forma sutil.
Por diversas vezes tomei uns belos sustos👀, além de me sentir seduzida, impactada e horrorizada diante da doce visão branca de fim de mundo proposta pelo narrador, um pesadelo distópico surreal e sinestésico.
No pósfácio da edição da editora Fósforo há excelentes críticas que suscitam Kavan como uma precursora das atuais discussões sobre o Antropoceno, tema pelo qual tenho nutrido um interesse particular.
Para mim, o que mais impressiona na obra é como Kavan, partindo de uma estética expressionista, evidentemente influenciada por Franz Kafka, desloca o tema da repressão e do poder para a questão de gênero, unindo à temática ambiental.
Ao não dar voz à mulher na obra, partimos da visão de um homem, o masculino, que quer tomar posse e que se espelha no perfil dominante do guardião na fruição da garota, o feminino.
O masculino parece ser a arrogância do poder que acredita ter o controle de seu desejo e de sua satisfação…
Esse eixo parece estar contemplado na obra por pinceladas de um militarismo estabanado. Diversos oficiais tentam controlar o caos que se instalou entre as pessoas, mas é impossível, e tudo gira em um individualismo do salve-se quem puder. Não há informações oficiais sobre o que está acontecendo e o cataclismo ganha um status de abstração.
A certa altura percebemos que o narrador é também um soldado que parece ter abandonado seu posto, rondando o guardião atrás da garota e sofrendo com pesadelos e insônia. As pessoas, assim como o narrador, não conseguem perceber o fim do mundo e a realidade catastrófica não passa de uma alucinação.
“Pensei no gelo se movendo pelo mundo, arrastando a sombra rastejante da morte. Penhascos de gelo explodiam nos meus sonhos, estouros indescritíveis ressoavam e ribombavam, icebergs despencavam, arremessavam blocos gigantescos para o céu como foguetes.” Gelo, Anna Kavan
A garota parece funcionar como um representante feminino da natureza, ao ser confundida fisicamente com a paisagem gélida, possuída pela ambição do homem.
Essa posse guarda um desejo, uma ganância sedutora e amedrontadora, ao mesmo tempo abstrata e insondável. A garota/natureza revida e sua vingança é um deleite brutal. Ela se oferece em gozo para a destruição definitiva.
Anna Kavan (1901–1968) nasceu Helen Woods de pais britânicos ricos em Cannes. Quando ela tinha dez anos foi enviada para um internato no Reino Unido. No ano seguinte, seu pai cometeu suicídio. Em 1920, Kavan casou-se com um engenheiro ferroviário e os dois se mudaram para a Birmânia, onde nasceu seu filho Bryan. Em 1938, com a deterioração do casamento, Kavan tentou o suicídio e foi internada em uma clínica psiquiátrica na Suíça. Adotando o nome Anna Kavan (em homenagem a uma personagem que apareceu em dois de seus livros anteriores), ela escreveria sobre essa experiência na coletânea de contos Asylum Piece (1940) e vários romances como Kavan, incluindo seu livro de maior sucesso, o romance Ice (1967), que foi publicado um ano antes de morrer de insuficiência cardíaca.
❄️Mais sobre Anna Kavan;
❄️O estilo de Anna Kavan;
❄️Gelo: uma fantasia sobre o comportamento sexual masculino predatório.
Se você se interessa por Literatura e Antropoceno está rolando vários projetos legais :)
🌱Projeto Filamentos: Literatura e Antropoceno com @anarusche e @editorabandeirola em que estamos debatendo algumas relações entre ecologia e ficção científica;
🌱Pré-lançamento de Depois do Fim: conversas sobre Literatura e Antropoceno pela editora instante.
Jamais esquecerei a leitura de Gelo e a força da escrita de Anna Kavan. Acredito que ela dialoga de uma forma perturbadora com um futuro que nem sabemos se chegará. Mas o que eu realmente espero é que a literatura, em especial a literatura feita por mulheres como Kavan nos faça despertar para um futuro diferente.
Um beijo e até próxima edição! ;)
(Com mais histórias pra gente pensar, como sugere Ailton Krenak, formas de adiar o fim do mundo!)
Thais