Pronta para o sacrifício: a terra devastada em The Last of Us🥀
Eu tenho fascínio por histórias que sabem caminhar pela estética do entretenimento e ao mesmo tempo conseguem desenvolver grandes personagens e conflitos profundos.
É exatamente o que a série The Last of Us faz. Trama proveniente do mundo dos games, a série distópica combina uma dramaturgia impecável, especialmente na construção do arco das personagens Joel Miller e Ellie Williams, com todo o sabor de uma história de ação com mundos apocalípticos e alguns zumbis bem sinistros.
Não conheço o jogo que deu origem à série. Vou me limitar a analisar o arco feito para a série de TV que inclusive acredito ter alguns problemas de estrutura quando encaixa histórias autônomas dentro do universo — boas histórias que caberiam bem em formato serializado, mas que destoam da unidade de efeito do arco da relação entre Joel e Ellie, para mim o ponto alto da trama.
A relação de cuidado tão intensa entre esses personagens me fez pensar em outra história: A Estrada, uma narrativa de sobrevivência no contexto da terra devastada na ficção científica.
Assisti há muitos anos e nunca esqueci… A Estrada é como um pesadelo real. Depois descobri que esse filme é uma adaptação de um livro de um escritor interessante que eu ainda preciso conhecer! Cormac McCarthy
Não tive oportunidade de ler a obra, mas lembro bem o quanto a relação intensa de cuidado de um pai pelo filho se torna a base de humanização em um mundo devastado e repleto de humanos tão famintos que chegam a comer os próprios filhos, tamanho desespero que se instala.
Em The Last of Us a luta pela sobrebivência não é tão aguda, há restos de organização social e bolhas de subsistência, mas que não deixam de tornar um mundo devastado pela infecção do fungo Cordyceps extremamente hostil e perigoso.
Um elemento chamou a minha atenção do início ao fim da trama: a necessidade do sacríficio de uma menina, a impetuosa Ellie.
Se você ainda não assistiu à serie não continue a leitura! Esse texto contém zilhões de spoilers! Vai lá, assiste e volta aqui, você não vai se arrepender! Quero saber a sua opinião sobre The Last of Us👁️👁️👁️🔥🔥🔥
Joel é um homem melancólico sobrevivendo no fim do mundo. Traumatizado pela perda da filha quando o apocalipse teve início, ele parece não ter mais motivos para querer viver.
Ainda assim ele segue, possui uma companheira, Tess, que repassará a ele um desejo muito específico. Levar Ellie para os vagalumes, um grupo perigoso e anarquista. A garota foi a única que, ao entrar em contato com o fungo, não contraiu a infecção, por isso seu sangue guarda a chave de uma possível cura para a doença que destruiu o mundo.
Descobrimos que Tess tem uma motivação própria para colocar ela e o companheiro em tamanho risco. Ela contraiu a doença e tinha esperança de se salvar. Ela não resiste, mas faz o companheiro prometer que irá cumprir a missão de levar a menina ao seu destino. Se ela não pode se salvar, outros poderão.
É a partir desse ponto que a série começa a desenvolver uma belíssima trama sobre a experiência de cuidado e a relação com o Outro.
Joel é aparentemente o típico herói durão, e a série sabe brincar com esse aspecto que tanto fascina o grande público de histórias blockbuster: combater inimigos, lutar, fugir, escapar, se preciso matar...
Mas Joel não se orgulha de nada disso... Na sua percepção ele o faz apenas para sobreviver e, agora, para cumprir a sua promessa com Tess, ele não hesita em cometer as piores atrocidades para salvar a menina e cumprir a sua missão.
No entanto Joel não é o típico herói. Nós percebemos delicadamente em seu rosto tenso um medo avassalador, a sua falta de confiança, a covardia. Ele não acredita que conseguirá.
Nós sabemos de sua falha e Pedro Pascal está simplesmente brilhante na construção das camadas da construção desse dúbio herói!
Mas Ellie já o adotou como seu cuidador e isso, quem cuida sabe, é algo que não tem volta. Ellie deposita plena confiança em Joel e será essa força, a de uma criança que confia, que o fará prosseguir.
Por diversas vezes na jornada Joel vacila e a própria Ellie, corajosa e destemida como todas as crianças, cheia de fé, o protege também e até mesmo o salva, recuperando suas forças.
Quantas vezes um filho não faz isso com a gente? Nós achamos que não somos capazes, que não vamos conseguir e eles nos ensinam, nos mostram que temos força para muito mais.
Há uma cena belíssima em que Joel chora todo o seu desespero e medo. Ele assume a sua covardia e ameaça abandonar Ellie para uma pequena comuna que encontram durante o caminho.
Não lembro de ter visto um herói, um homem travestido no arquétipo de durão, se desarmar assim no audiovisual há muito tempo…
Mas Ellie não desiste. Ela acredita nele e prova para Joel que ele pode.
Cuidar sempre será a experiência mais radical do ser humano.
A jornada continua e eles estão muito próximos de cumprir a missão. Ellie finalmente poderá proporcionar a cura para a famigerada doença que assolou e destruiu o mundo como conhecíamos.
Mas Joel descobre que para isso Ellie deverá ser sacrificada. Extrair a cura de seu corpo exigirá a sua morte. E um profundo conflito encerra o arco brilhante desses personagens.
Devo cuidar e proteger os meus ou cuidar de todos? Joel faz a sua opção e não conseguimos decidir qual lado parece mais egoísta.
Quem daria em sacrifício o próprio filho para salvar a humanidade? Por outro lado, como sacrificar milhares, apenas para salvar uma única menina?
Às vezes penso, esse conflito é real? Para uma sociedade dividida entre a vida individual, a família, e a vida coletiva, a sociedade, sim.
Eu e Outro permanecem distantes e inconciliáveis mesmo em uma experiência profunda sobre alteridade entre um pai e uma filha.
Talvez, enquanto o pai precisar oferecer a filha em sacrifício, a terra permanecerá arrasada. O universo distópico permanece, a saga continua… e eu sigo pensando.
Obrigada por ler até aqui!❤️✉️
Links para ficar de olho!👁️
👁️ A Estrada de Cormac McCarthy;
👁️ Razão Inadequada — um podcast de filosofia incrível: o episódio Máquina de repetir conceitos é uma excelente reflexão sobre pensamento e criação em tempos de ChatGPT;
👁️Pré-venda de Sem tempo a perder pela Goya;
👁️ Meio-Norte 2B84 meu novo romance de ficção científica ;) está disponível no site da editora Oito e Meio. Ou, se preferir, você pode falar comigo no direct do instagram. ❤️
Falei mais dele aqui!
Bjs e até a próxima edição ;)
Thais