Estou em um momento de conhecer mais a literatura da escritora Ursula K. Le Guin e, buscando mais informações sobre sua biografia, descobri que ela, assim como tantas outras mães e escritoras, também viveu o dilema de conciliar a maternidade e a escrita.
Ursula conta que o casamento com o historiador Charles Le Guin significou o fim de seu doutoramento, e com o nascimento dos filhos passou a ter horários restritos para escrever, pois boa parte de seu tempo era dedicado aos cuidados com a família.
Le Guin era uma escritora de ficção científica que escrevia histórias profundas e, às vezes, sombrias enquanto organizava as festas de aniversário dos filhos.
“É engraçado como você pode viver em vários planos, não é?”, a escritora diz em uma entrevista a Jullie Phillips.
Não é à toa que em seus livros a questão da maternidade apareça não apenas pelo aspecto dos papéis de gênero, mas como algo capaz de fundar novas bases sociais.
Em A mão esquerda da escuridão ela especula: Como seria uma sociedade em que o gênero não definisse o papel de cuidador de uma criança? E se todos se sentissem responsáveis por elas?
Nenhuma criança com mais de um ano de idade vive com os pais; são todos criados nos Lares Comensais.
Um quarto ou um terço da população urbana ocupa-se, em tempo integral, na criação e educação das crianças. Aqui, o clã cuidava de suas próprias crianças; ninguém — e todo mundo — era responsável por elas.
A mão esquerda da escuridão
Ursula Le Guin
Para as mães escritoras de ficção especulativa, a maternidade e o cuidado se tornam temas centrais de suas histórias, pois escrever e cuidar dos filhos se tornam uma coisa só.
No famoso Conto da Aia de Margaret Atwood a questão da fertilidade é fundamental para o entendimento dos mecanismos de controle social, vigilância e poder.
Na República de Gilead as mulheres não têm direitos. Elas são divididas em categorias, cada qual com uma função muito específica no Estado. Na categoria das aias, as mulheres pertencem ao governo unicamente para procriar, considerando que uma castástrofe nuclear tornou estéril um grande número de pessoas.
Nas obras de Atwood, as personagens femininas estão dominadas pelo patriarcado. Apesar do enfoque de extremo sofrimento em torno da maternidade, Atwood já manifestou que mulheres não devem ser condenadas por se tornarem mães.
Essa é uma questão que merece nossa atenção.✨
Gosto muito quando Ursula Le Guin, de forma mais utópica, mostra uma sociedade em que ter filhos é sim uma experiência maravilhosa — afinal gerar uma vida é algo grande e potente! —, se todos estiverem envolvidos.
O instinto, o desejo de proteger e favorecer, não é uma característica ligada ao sexo. (…) O rei está grávido.
A mão esquerda da escuridão
Ursula Le Guin
Frankenstein (Ou o Prometeu Moderno), a obra considerada por muitos críticos como fundadora da ficção científica, foi escrita por uma jovem mãe dois anos depois de ter engravidado de seu primeiro filho, morto logo após o nascimento, um bebê que ela não nomeou.
Grávida novamente apenas algumas semanas depois, ela provavelmente ainda estava amamentando seu segundo bebê quando começou a escrever “Frankenstein”, e grávida do terceiro quando terminou, explica Jill Lepore.
Shelley estava tentando elaborar em sua obra não apenas a questão da maternidade, da concepção, mas especialmente sobre como os homens, diferente das mulheres, lidam com a questão do cuidado com o Outro.
Na cinebiografia de Haifaa Al-Mansour é possível entender como o sofrimento das mulheres impacta na criação da trama intrincada que é Frankenstein.
Na primavera de 1816, Lord Byron foge de um escândalo: o caso com sua meia-irmã, Augusta Leigh, corria o risco de vir à tona por uma denuncia de sua esposa.
Ele deixa a Inglaterra para Genebra e se encontra com Percy Shelley, Mary Godwin e Claire Clairmont. No verão, Clairmont estava grávida de Byron. Byron entediado anuncia uma competição de histórias de fantasmas.
Mary Godwin, ainda solteira, começou a história que se tornaria “Frankenstein” no período em que Clairmont dá à luz uma menina — que será abandona pelo pai, Byron, em um convento —, e a esposa de seu futuro marido, Percy Shelley, se mata.
Jill Lepore explica que provavelmente Lord Byron serviu de inspiração para Victor Frankenstein, um homem que engravidava suas amantes e abandonava os filhos.
Vitor Frankenstein, o criador, abandona sua criatura, o bebê sem nome, o inominável.
Shelley escreveu um verdadeiro clássico que ainda hoje reflete inúmeras questões e dentre elas segue atual o fervoroso debate sobre a responsabilidade de cientistas de machine learning do Vale do Silício na criação de suas IAs.
No debate de gênero x tecnologia, não podemos jamais esquecer que a maternidade e a gestação são questões centrais.
Penso que tempos difíceis estão chegando quando vamos querer vozes de escritores que possam enxergar alternativas para como vivemos agora e que possam ver através de nossa sociedade acometida pela medo e suas tecnologias obsessivas. Vamos precisar de escritores que possam se lembrar da liberdade. Poetas, visionários – os realistas de uma realidade maior.
—Ursula K. Le Guin
Amanhã começa o mês de maio, o mês das mães, e 1 de maio é do Dia do Trabalhador.
Não podemos mais reduzir a maternidade a uma idealização opressora.
Na sociedade em que vivemos o trabalho doméstico oprime mulheres que estão à beira de um colapso pela dupla ou tripla jornada e reduz a mulher a papéis específicos.
Por outro lado, jamais podemos perder de vista a potência que é gestar, cuidar e amar.🌱
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As obras dessa edição:
👁️ A mão esquerda da escuridão, Ursula Le Guin
👁️ O conto da Aia, Margaret Atwood
👁️ Frankenstein ou o Prometeu Moderno, Mary Shelley
Bjs e até a próxima edição ;)
Thais
Ainda não li nada da Ursula Le Guin, mas tá na lista com vários livros. Edição potente essa! Confesso que nunca havia pensado na relação de escritoras com a maternidade
Eu ouvi um audiodrama de "A mão esquerda da escuridão" - foi como assistir uma peça de teatro de olhos fechados kkkk - daí por ser uma adaptação não deu pra pegar essa parte sobre criar as crianças, mas tudo que requer "esforço da comunidade" me desanima muito, porque eu não acredito mais no potencial do ser humano de viver em comunidade. Viver em comunidade significa aceitar todas as milhões de micro falhas dos outros seres humanos, e entre a internet e o capitalismo, eu acho que a gente desaprendeu isso.