Resgatando o olhar e a voz de Olímpia:
a autômata do famoso conto fantástico O Homem da Areia de E.T.A. Hoffmann
Autômato é substantivo masculino, mas no famoso conto O Homem da Areia de E.T.A. Hoffmann sempre fiquei impressionada com Olímpia, uma autômata criada por Copolla e pela qual Nataniel se apaixona.
Li a primeira vez esse conto na faculdade e o foco de estudo na época era a interpretação freudiana sobre o sentimento de estranheza e a castração do protagonista.
Mas esse papo todo sobre o garoto perseguido e assombrado pelo homem da areia não me interessava muito. Eu só conseguia pensar na terrível condição de Olímpia e a relação desta com o desfecho da noiva de Nataniel, Clara.
Nessa história fantástica, Nataniel se apaixona pela boneca por um motivo no mínimo estranho: ela não expressa seus desejos.
Ele só tem olhos para essa boneca passiva, fria e sem vida...
Autômato significa agir por vontade própria. Por que então Olímpia gera desejo exatamente pela característica oposta? A passividade? Por ser supostamente vazia de significado?
A mão de Olímpia estava tão fria quanto o gelo. Ele sentiu correr em suas veias o frio terrível da morte. Olhou para ela: amor e desejo brilhavam naqueles olhos.
O Homem da Areia, E.T.A. Hoffmann
O conto é de 1817 mas o imaginário da mulher artificial presa e controlada como títere permanece como uma cruel reprodução da misoginia no ambiente virtual...
No famoso filme Ex machina de Alex Garlan, Nathan, o CEO bilionário de uma grande empresa de tecnologia, cria Ava, uma inteligência artificial feminina presa em cativeiro para testes.
Mas é estranho que muitos de nós tenhamos mais ou menos o mesmo julgamento sobre Olímpia (...) ela nos pareceu, de uma maneira muito estranha, rígida e sem alma. (...) é como se, apesar de agir como um ser vivo, houvesse nela algo de singular e de equívoco.
O Homem da Areia, E.T.A. Hoffmann
No famoso conto fantástico, Nataniel é levado à loucura por Olímpia, com um desfecho assustador e surpreendente o canône literário dirá. Ava também enlouquecerá Caleb, um jovem programador da empresa de Nathan que vai para o cativeiro para testar as habilidades da andróide.
Dessas duas terríveis relações, eu realmente prefiro o final de Ava em Ex Machina e só não vou contar aqui para não dar spoiler. Leiam o conto e vejam o filme!, rs!
Se Olímpia é considerada uma projeção de Nataniel como uma espécie de amor narcísico — Olímpia é Nataniel — não dá para não refletir sobre os impactos da visão de mundo do criador no controle de suas criaturas!
Não é por acaso que a inteligência artificial seja uma mulher!
Já reparou que as assistentes virtuais que dominam as nossas rotinas em sua maioria têm vozes e nomes de mulheres? Siri, Cortana, Alexa...
Por que todas as assistente virtuais têm vozes de mulheres? Aqui uma reportagem bem completa da UOL sobre o tema.
Por que a inteligência artificial é uma mulher? Ou o estereótipo do que pensamos ser uma mulher...
Por que a tecnologia reforça esse papel servil das mulheres em um contexto que deveria ser inovador?
Um estudo realizado pelo professor de comunicação Clifford Nass analisou os sentidos comunicados pela voz:
A voz sintética feminina é percebida como capaz de nos ajudar a resolver nossos próprios problemas, enquanto a equivalente masculina é vista como figura de autoridade que nos dá as respostas.
Clifford Nass
A voz suave, subserviente, a mulher assistente, a mulher cuidadora.
Um estudo lançado em maio de 2019 pela UNESCO, chamado “I’d Blush If I Could” (“Eu coraria se pudesse”), constatou que, como as assistentes são programadas basicamente por homens (que representam 90% da força de trabalho na criação de Inteligência Artificial) e têm a premissa de estar sempre conectadas aos seus usuários, quando são verbalmente assediadas suas respostas são tolerantes, subservientes e passivas.
O título da publicação toma emprestado o nome da resposta dada por Siri, um assistente de voz feminino usado por centenas de milhões de pessoas, quando um usuário humano dizia a 'ela': “Ei Siri, você é uma p ***.”
O que é interessante nesse estudo é como ele estrutura dois eixos importantes: quem é o criador e quais são as consequências na determinação das características da criatura.
A famosa e tão importante relação criador e criatura que debati nessa edição sobre as Big Techs.
O grande triunfo da inteligência artificial fabricada por essas empresas foi conseguir adentrar em nossas vidas privadas, dentro das nossas casas, no ambiente doméstico, na mente e no coração dos nossos filhos.
E o ambiente doméstico sempre foi um espaço de dominação e controle do patriarcado por meio do trabalho doméstico não remunerado, afetivo e subserviente.
Não se deve ignorar a contribuição de certo percentual de pessoas que servem às outras para que aquelas que são servidas possam produzir ainda mais. O trabalho das mulheres na casa certamente permite aos homens produzir mais riqueza do que eles conseguiriam produzir em outra situação […] o fato mais importante nesse debate é que, seja qual for o valor econômico do trabalho doméstico dessas mulheres, elas não recebem por ele.
Mulheres e economia
Charlotte Perkins Gilman
Como essas empresas criam a personalidade dessas assistentes? O que pode ser considerado ético em um design que leva em consideração a experiência e a satisfação imediata do usuário?
Às vezes ácida, às vezes bem-humorada, as inteligências artificias vão muito além de simplesmente organizar as nossas agendas.
São as donas dos nossos dados, das nossas vidas, das nossas memórias e dos nossos afetos.
Hoje, mulheres e meninas têm 25% menos probabilidade do que os homens de saber como alavancar a tecnologia digital para fins básicos, 4 vezes menos probabilidade de saber como programar computadores e 13 vezes menos probabilidade de entrar com pedido de patente de tecnologia. Em um momento em que todos os setores estão se tornando um setor de tecnologia, essas lacunas devem deixar os formuladores de políticas, educadores e cidadãos comuns 'corados' e em alarme.
Eu coraria se pudesse, Unesco
A tecnologia digital do nosso tempo se tornou um espelho grotesco da visão de mundo de seus criadores:
Meia dúzia de empresas que dizem escrever o futuro da humanidade sem debate e sem a participação da sociedade e que, agora, mais do que nunca já demonstraram que se acham — e acreditam! — maiores que o Estado intervindo de forma escancarada e obscena em processos legislativos.
Apesar da discussão acertada de que a tecnologia reflete um mundo — opressor como ele é — que precisa ser duramente combatido, acredito que há algo maior, estrutural, sobre a criação de tecnologias hoje — e da qual somos tão dependentes —que precisamos estar muito atentos, pois isso será definitivo para pensar a sociedade que queremos não apenas para nós, mas para as próximas gerações.
Essas mulheres artificiais se transformaram em inspiração para criar o mundo distópico de Meio-Norte! Meu primeiro romance que ganha publicação pelo selo Transversal da Editora Oito e Meio em maio deste ano.
Lis é uma robô doméstica, a sétima de uma geração de mulheres que carrega uma maldição... Eu quis dar a Lis a voz e o olhar que foram roubados de Olímpia. Qual história ela poderá nos contar?
Para adquirir o seu exemplar é só falar comigo no direct do instagram Enviarei para você com carinho!
Obrigada por ler até aqui! ❤️✉️
Links da edição!
👁️ Clássicas do pensamento social, Mulheres e feminismo no século XIX, organização de Verônica Toste e Bila Sorj.
👁️ O Homem da Areia, E.T.A. Hoffman
👁️ Meio-Norte 2B84, Thais Nunes
👁️O Homem da Areia, edição ilustrada, Eduardo Berliner
Uma música e clipe lindo do Daft Punk Infinity Repeating para você curtir!
Bjs e até a próxima edição ;)
Thais
Adoro Ex Machina! E muito boa a reflexão sobre o Hoffmann. Já querendo ler teu livro ☺️
Interessante esse texto, Thaís... realmente nunca parei pra pensar q, de fato, a voz dos assistentes virtuais é feminina... Uma vez escrevi o roteiro de um curta metragem q era mais ou menos sobre isso, de um cara q ficava preso às respostas de um assistente social artificial. A voz, no entanto, era masculina... e dava as respostas q ele queria ouvir (doido, pq nunca tinha lido nada sobre isso - q associamos respostas à voz masculina, como vc escreve aí!). Bom, é isso... mto bacana! Queria ler o seu livro tbm.