as armadilhas do desejo e o amor como saída para o Caos em Matéria Escura
ou sobre os desafios imaginativos na ficção especulativa
Será que estamos presos à ideia de amor romântico como a salvação para o Caos? Essa foi uma questão que me fiz ao ler e assistir Matéria Escura, obra de Blake Crouch.
A ficção científica parte de uma premissa simples e poderosa: E se? A especulação é um artifício de imaginação que nos permite construir realidades alternativas àquelas com as quais não estamos muito satisfeitos. Mas longe de ser uma fuga, é um belo reencontro, uma fundação de um mundo que se abre a partir de uma brincadeira com a narrativa de origem.
Quem nunca se pegou pensando como seria a vida se tivesse tomado outro caminho? Quem nunca teve uma sensação ruim de arrependimento ao repensar algumas escolhas, algumas decisões que até hoje parecem erradas. Mas será que esse erro de fato nos determina? Será que vale alimentar esse ressentimento?
A ficção no geral nos permite fantasiar como teria sido... Como teria sido se você não tivesse se casado ou se você tivesse se casado, como seria uma vida sem filhos ou o oposto, e aquela grande paixão que ficou para trás? A faculdade abandonada, o emprego que se perdeu, a carreira dos sonhos... Tantas são as escolhas que temos que fazer ao longo da nossa jornada que não deixa de ser tentador fantasiar como teria sido a vida em um caminho diferente do que escolhemos.
Esse tropos de ficção especulativa, a realidade alternativa, parece ser a base de Matéria Escura. Jason Dessen, um professor insatisfeito e pai de família apaixonado pela esposa, mas preso a uma vida comum, é misteriosamente capturado e levado para uma realidade alternativa em que ele tem a oportunidade de viver um desejo frustrado: ser um cientista brilhante que ganhou um prestigiado prêmio e revolucionou a física.
O ponto de divisão dos mundos é a gravidez de sua esposa Daniela. Ser um pai de família ou seguir focado em ter uma carreira brilhante? Ter os dois é impossível na lógica criada por Matéria Escura.
A premissa é boa, instigante, desperta a nossa imaginação e nos leva a pensar em nossas próprias escolhas e o que seríamos em outra realidade se tivéssemos a oportunidade de reencontrar esse desejo perdido.
Pelo menos foi com essa expectativa que eu decidi ler Matéria Escura. Mas o livro me decepcionou bastante. Muito diferente aconteceu com a série, que é muito bem escrita e com alternativas aos problemas narrativos do original que fazem a história funcionar de alguma forma, ainda que com algumas limitações oriundas do original.
Atenção: a partir daqui o texto contém spoiler do livro e da série!!
O livro tem um problema sério na construção de seu narrador. Quando conhecemos a história como um todo, no livro e na série, nós entendemos que se trata no fundo de uma história sobre um duplo.
O Jason professor, homem frustrado de vida ordinária, se opõe ao Jason cientista, homem bem-sucedido, confiante, mas que aparentemente se sente vazio, sem amor. É uma oposição que funciona muito bem na série devido à montagem que intercala essas identidades por meio de diferentes realidades alternativas constrastantes e diversas cenas bem boladas que se contrapõem, trazendo uma interessante reflexão sobre como as nossas escolhas moldam a nossa identidade.
Afinal, a nossa história, a história que escrevemos determina a nossa identidade? Ou temos uma essência?
O Jason cientista brilhante vive uma vida de ostentação, com relacionamentos frágeis e vazios. Ele tem uma visão cínica sobre o amor e age como se tudo fosse um jogo de conquistas. Esse é o Jason 2. Já o Jason professor é um homem inseguro, inocente e preocupado com o sentimento do outro: o Jason 1 é o nosso herói, pois é apresentado pela história como moralmente melhor que Jason 2.
Quando observamos, por meio da montagem, essas duas personalidades e entendemos que se trata da mesma pessoa, temos noção da complexidade do personagem e como tudo isso o compõe, herói e vilão são a mesma pessoa. No livro isso não acontece.
A construção da narração literária é feita por meio do Jason 1, o pai de família, que narra em primeira pessoa todas as suas impressões da jornada nas diferentes realidades. Por ser estruturalmente o herói da história, Jason 1 narra sua visão de mundo de uma forma extremamente maniqueísta. Ou se é bom e apegado à família e um fracassado, ou se é bem-sucedido e egoísta. Além disso, o narrador cai em várias reflexões clichês sobre vida burguesa e família, e tem uma visão muito norte-americana de que a carreira é algo fundamental na vida de uma pessoa de sucesso e inconciliável com a vida familiar e por aí vai...
No livro, só entendemos que Jason 2 criou a máquina para ir para realidade de Jason 1 no terceiro ato do livro e passamos boa parte da história acompanhando Jason 1 entrando em várias realidades alternativas para encontrar o caminho de volta para casa e para família.
Eu quase desisti do livro. Fiquei esperando o personagem viver a realidade que ele tanto desejava e ansiava conhecer e refletir sobre ela, sobre o desejo frustrado, mas ele tem apenas medo desse novo mundo e entra imediatamente na máquina para voltar para a família e para a esposa Daniela, pois ele tem certeza absoluta de que de fato é essa realidade em que ele quer estar.
Não percebi hesitação alguma desse protagonista e nem uma busca efetiva por compreender a dimensão de seus desejos. A tensão do conflito inicial se dissolve e já não sabemos mais do que se trata o romance… Ele não vive os prazeres do desejo frustrado e nem tem o gosto de experimentar um pouco dessa fama tão idealizada. Na lógica de Matéria Escura isso parece até um pecado.
Em um determinado ponto da história ele percebe que a regra para entrar em uma nova realidade é a forma como ele deseja. O desejo abre um mundo novo e é preciso ter cuidado ao saber desejar. O desejo pode nos levar a um mundo de maravilhas ou a mundo de horrores, tudo depende de como damos forma ao desejo no processo de escrever a nossa história.
Quando você escreve, concentra toda a sua atenção naquilo. É quase impossível escrever uma coisa pensando em outra. O ato de escrever mantém as intenções e os pensamentos organizados.
Matéria Escura
Blake Crouch
Achei essa regra fenomenal, mas mais uma vez ela se perde na história, pois no livro o personagem não encena de fato os perigos do desejo, não reflete de forma profunda sobre as realidades em que vai entrando e fica obcecado com um ideal de realidade originária e seu amor original, Daniela.
Na série, essa fixação e a ideia de que apenas um amor verdadeiro é a base para sabermos quem de fato somos, a nossa essência, vai se manter. Mas ao menos o jogo de identidade e a multiplicidade do ser de Jason é minimamente problematizada com um jogo visual de portas que abrem mundos diversos a partir do controle dos desejos.
Esse aspecto tão interessante ganha amplitude na série e também é levado para outros personagens como Jason 2 que encena parcialmente esse controle do saber desejar e consegue manipular os diferentes mundos a seu bel-prazer.
Na série, Jason 2 é pra mim o personagem mais interessante. Ele no mundo de Jason 1 tenta de fato realizar o desejo frustrado, ficar com Daniela, mas essa Daniela de um mundo perdido não se encaixa em sua personalidade dimensionada por um Jason que um dia a recusou pelo sucesso. Ele tenta moldar esse mundo, mas é impossível.
Já Jason 1 recusa viver o desejo representada na figura de Amanda, a psiquiatra. Ela o ajuda na jornada pelas realidades alternativas a desvendar o mistério sobre o controle dos desejos e se apaixona por Jason 1. Amanda, uma personagem interessante e empática, é no entanto completamente refutada por Jason 1 que fixa sua busca em Daniela e o filho, tendo um desfecho desconcertante romance.
O final do livro é frustrante. A ode à família e ao amor original não tem fim. A própria história tem consciência do clichê em que se meteu, mas não encontra saídas narrativas para fugir disso.
“Tudo leva a crer que minha identidade não é binária.
É multifacetada.
E talvez eu possa abrir mão da dor e do ressentimento do caminho não trilhado, porque o caminho não trilhado não é apenas o inverso do que eu sou.
É um sistema infinitamente ramificado que representa todas as permutações da minha vida entre os extremos que são Jason 2 e eu.”
Matéria Escura
Blake Crouch
É como se Matéria Escura defendesse que há componentes essenciais do ser para além das vivências e experiências. Um valor fundamental, uma essência, que na trama parece estar muito ligado ao amor romântico e à família.
Longe de defender um relativismo de valores, acredito que a realidade alternativa é um reencontro com nossos desejos frustrados e uma abertura para a reescrita da vida a partir da própria vida. Esse é o nosso mistério criador e ele possui uma relação profunda com a escrita do desejo.
Quando desejamos, o mundo se abre, mas nem sempre esse mundo era o que estávamos idealizando porque a experiência é sempre mais plural e potente que uma fantasia, uma idealização. Pra mim, o reencontro com o desejo frustrado na realidade alternativa está longe de ser apenas um escape da realidade.
É uma possibilidade de reinventar a si próprio em um processo de fuga ativa e um desafio imaginativo, a partir da capacidade de lidar com a própria vida ao reescrevermos incessantemente a nossa história – e acredito que essa escrita não precisa ser nem linear, nem lógica, mas múltipla, muitas vezes será caótica e nós precisamos aprender, a aceitar e até a amar o Caos.
Essa é a pra mim a grande questão e a beleza da ficção científica como gênero literário: dar conta dos limites da nossa imaginação para inventar a abertura para múltiplas realidades.
Matéria Escura ainda é, a meu ver, uma narrativa que se fecha em uma solução, em um único mundo ideal. Uma pena.
Será que é assim que Deus se sente? A exultação em literalmente ditar o surgimento do mundo? Sim, este mundo já existia, mas eu o conectei a nós. De todos os mundos possíveis, encontrei este, que, ao menos pelo que vejo daqui da porta da caixa, é exatamente aonde eu queria chegar.
Matéria Escura
Blake Crouch
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Thais
Eu terminei de ver essa série ontem e vim aqui ler tua análise. Concordo que a trama teve um fim bem aquém do potencial da história; um final piegas, mesmo: a família nuclear reunida, o único e verdadeiro amor reconquistado - e nada mais importa. Ideais estes tão conservadores que é difícil fazê-los caber numa história que deveria, como você bem pontuou, investigar a complexidade dos desejos! Eu percebi que a série (não li o livro) ia por um caminho BEM moralista quando fizeram questão de mostrar que o Jason 1 continuava super fiel à musa Daniela, mesmo tendo conhecido uma mulher incrível, empática e que estava passando por todo tipo de horror junto dele, lutando junto (Amanda). Além disso, achei impossível o Jason 1 ser aquele homem impecável, guardião da honra e da justeza, quando tantas versões dele mesmo eram capazes de tanto horror - e separados por distâncias temporais tão curtas! Beleza, algumas situações que vivemos podem mudar traços de caráter e nos tornar mais violentos, defensivos. Mas quando surgiu aquela multidão de Jasons matando uns aos outros, torturando, atirando no carro onde estava A FAMÍLIA INTEIRA, eu pensei: não é possível que o Jason 1 seja esse alecrim dourado, porque todos esses impulsos estão dentro dele. No fim da série me deu certo alívio cederem um pouco no maniqueísmo ao darem nuances de empatia e autocrítica ao Jason 2, mas o Jason 1 continuou aquele personagem planificado, sem sombras, sem dúvidas, sem erros. Adorei teu texto!