O desenvolvimento da inteligência artificial é exponencial e o temor de sermos substituídos não só é real, como já está acontecendo. Basta observar as demissões em massa das grandes bigtechs.
Mas o que a gente pode não estar vislumbrando é que o medo de ser substituído é algo que ocorre apenas no mundo do trabalho assalariado, no mundo em que as poucas pessoas que estão incluídas com salários no sistema capitalista finalmente parecem perceber que poderão ser facilmente descartadas por robôs. Isso não é nenhuma novidade, no capitalismo as pessoas são descartáveis.
No entanto você acha que uma mãe cuidando de um bebê de madrugada teme ser substituída por um robô? Uma comunidade plantando arroz e feijão e lutando para tornar o solo fértil nem sonha que o ChatGPT e suas versões aterrorizantes irá substituí-las nessa árdua missão.
O que podemos não está percebendo nessa corrida tecnológica é que a maior parte do trabalho realizado neste planeta não depende essencialmente de nenhuma tecnologia digital e não pode ser mecanizado.
Esse trabalho é o cuidado e a reprodução da vida. 🌱
O robô na ficção funciona como uma metáfora do trabalho alienado e em série, aquele realizado em grandes fábricas, com pregos batendo e roldanas girando em um ritmo frenético – sobre robôs na literatura sugiro a excelente edição da pequisadora de ficção científica Ana Rüshe sobre o tema.
Se o robô nos ajuda a pensar sobre o processo de exploração do trabalho capitalista realizado em fábricas o que dizer sobre a representação de mulheres andróides na ficção?
O trabalho realizado por mulheres em quartos e cozinhas sempre foi considerado alheio ao capital.
Talvez por isso uma mamãe robô na ficção possa ser algo bem exótico ou engraçado, afinal amor e tecnologia não se misturam.
Há uma espécie de divisão entre mulheres que trabalham e mulheres que são apenas “donas de casa”, explica Silvia Federici.
Mas o fato é que trabalhar fora de casa nunca nos livrou do trabalho doméstico e da dupla ou tripla jornada de trabalho. Nós somos as principais responsáveis mentais por todo o funcionamento da vida familiar: limpeza da casa, roupa passada, festa de aniversário das crianças, alimentação saudável, cuidar de idosos e doentes. Nós estamos sempre na beira dos leitos e próximas ao fogão.
Muitos gostam de chamar esse duro trabalho não assalariado de amor.
“(...) o capitalismo fortaleceu o poder dos homens para supervisionar e comandar nosso trabalho não remunerado e disciplinar nosso tempo e nosso espaço.”
Assim é que na ficção a mulher andróide ou a inteligência artificial, por vezes, é retratada a partir dessa ideia enviesada de amor.
Medo, dominação, prisão e cativeiro predominam em algumas dessas histórias.
Em Ex-machina Ava é uma Inteligência Artificial sedutora e perigosa como a Eva do jardim do Éden. Ela está em cativeiro com seu dono (criador) que quer testar o seu poder e capacidade de seduzir um homem para se libertar.
Na série de ficção distópica Westworld, Dolores é um andróide sintético de um parque temático que simula histórias, como em um set de cinema, para entretenimento dos convidados que podem fazer o que quiser com os robôs do parque, sem seguirem regras ou leis e sem medo de retaliação.
Dolores protagoniza a história da mocinha apaixonada e excelente dona de casa para que homens possam domá-la e estuprá-la sem restrições. Essa cena se repete a exaustão nessa série. Não consciente do simulacro em que vive, Dolores, assim como Alice no país das maravilhas, tem apenas uma sensação de angústia permanente.
No filme I am mother uma mãe robô cuida de uma bebê humana que restou de um desastre apocalíptico que dizimou os seres humanos do planeta. Neste filme a mãe robótica é um monstro, uma fera protegendo a sua cria, a Filha, designada para repopular a Terra.
Nesta história a mãe é representada como redentora da humanidade. Apesar de termos a representação do cuidado, a mãe é vista de forma idealizada, a mãe natureza que irá nos salvar do nosso próprio pecado.
Nessas representações as mães mecânicas ou as mulheres artificiais estão presas em cativeiros e são vistas como meros objetos para alcançar satisfação sexual e para procriação, atividades vistas como algo próprio da natureza da mulher e não exatamente como trabalho ou exploração.
Mas a verdade é que o trabalho doméstico, “Esse trabalho, tão menosprezado, (...) tem sido, o pilar da organização capitalista do trabalho.” Silvia Federici
Na literatura, mesmo Robbie, o simpático robô-babá de Eu, Robô de Isaac Asimov ou as enfermeiras-babás das salas de fecundação e incubação da linha de produção de bebês de Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley são representações que não colocam o trabalho doméstico no centro da questão tecnológica do capital.
Há muito mais um medo da tecnologia e como esta pode controlar e condicionar as mentes humanas (Ainda que Huxley questione o lar, a família monogâmica e a função materna aos moldes freudianos).
Eu estimo que 60% das horas do meu dia são ocupadas por atribuições domésticas não remuneradas. Eu aprendi a realizar o meu trabalho remunerado em menos tempo para que eu tivesse mais tempo “livre” para os cuidados com a minha casa e para conseguir amamentar meu filho.
No entanto, foi de uma forma muito dura, que entendi o quanto o meu corpo iria sofrer com essa dupla e, por vezes, tripla jornada imposta a mim pela sociedade capitalista.
Esse trabalho árduo, estafante, é feito de uma maneira totalmente artesanal. O capital se limitou a introduzir seu desenvolvimento tecnológico na cozinha e nos quartos a poucos equipamentos e rústicos eletrodomésticos quando comparamos o avanço da automação nas fábricas, por exemplo.
“Como podemos mecanizar as tarefas de banhar, acariciar, consolar, vestir e alimentar uma criança, prestar serviços sexuais ou ajudar aquelas pessoas enfermas ou idosas que não são autossuficientes? Qual máquina poderia incorporar as habilidades e os afetos necessários para essa tarefa? Foram realizadas tentativas de criar robôs-enfermeiros e robôs de amor interativos, e é possível que, no futuro, possamos ver a produção de mães mecânicas.”
Mas “Ainda que pudéssemos pagar por esses dispositivos, devemos nos perguntar a que custo emocional os introduziríamos em casa para substituir o trabalho vivo?” Silvia Federici
O capital entendeu que somos mais necessárias na linha de produção de bebês que na linha de montagem de fábricas, criando, assim, a família da classe trabalhadora e a dona de casa.
Fato é que o movimento feminista colocou boa parte de nós de volta na fábrica - um avanço importante na luta pela igualdade de gênero -, mas a verdade é que nunca deixamos de realizar o trabalho doméstico. Assim criamos um estranho discurso de que somos fortes, damos conta de tudo, somos guerreiras!
Uma utopia pela qual pagamos com a própria vida.
Mas e se a tecnologia finalmente pudesse libertar as mães e mulheres do trabalho doméstico?
Lembrei do brilhante conto “A Savana”, de Ray Bradbury. Uma família comum vive em uma casa automática, uma espécie de realidade virtual que domina as mentes de todos da residência, substituindo os pais no cuidado dos filhos.
Bradbury com sua grande sensibilidade não deixa de especular sobre o impacto que as tecnologias poderiam ter ao “libertar” os pais do trabalho de cuidar de crianças.
“Incrível como o berçário captava as transmissões telepáticas das mentes das crianças e criava vida para atender a cada um de seus desejos! (...) mas e quando a mente da criança se acomodava a um único padrão?”
O homem ilustrado, Ray Bradbury
A chegada do meu filho me ensinou que o verdadeiro trabalho era cuidar dele e que eu não poderia me render às horas de tela no youtube e seus algoritmos padronizadores de mente.
Eu tive que fazer verdadeiros malabarismos para continuar trabalhando e ainda assim poder ter o direito de ser mãe e ficar perto da minha família.
Mas toda vez que eu via a foto de uma mulher amamentando no escritório ou de uma CEO com uma barriga enorme liderando um grupo de pessoas rumo ao sucesso eu não conseguia perceber isso como uma vitória do feminismo.
Eu não queria amamentar em cima da mesa do escritório, eu não queria me arrastar barriguda pelos corredores tortuosos de meu ambiente de trabalho, eu não queria deixar meu filho com uma babá para seguir na corrida pelo sucesso, eu queria ter o direito de exercer a minha maternidade, de ter esse trabalho reconhecido e remunerado e não precisar mais ter que me dividir em mil para dar conta de tudo.
O meu trabalho era a minha a casa e o meu filho e, pra mim, era, e ainda é incompreensível, por que eu deveria querer estar fora de casa, ter uma carreira, me matar para conciliar ser mãe e profissional, quando na verdade o que eu queria era ter o simples direito de poder cuidar do meu filho e que a sociedade reconhecesse a importância e o valor disso.
Talvez essa minha forma de pensar seja inconcebível para o desejo de muitas mulheres e eu entendo.
Uma mulher presa ao trabalho doméstico é refém de uma condição de exploração incalculável. Ela se mata para cozinhar, lavar a roupa e limpar o chão. Faz a lancheira das crianças, ensina as lições da escola, educa e precisa lidar sozinha com a birra de um serzinho se encontrando nesse mundo doido o dia inteiro sem receber nada por isso!, o capital não a remunera, não a valoriza, quem fica em casa não faz nada, padece no paraíso, pois tudo é por amor!
Ainda que quisesse ficar em casa com meu filho, no fundo eu não queria ser apenas a mãe, a dona de casa.
Às vezes eu acho isso tudo um beco sem saída. Nós mulheres seguiremos nos arrastando na maratona de dar conta de panelas, fraldas e do doutorado? Iremos continuar tapando o sol com a peneira achando que explorar outras mulheres com baixa remuneração para exercer a maternidade ou a limpeza da casa em nosso lugar é a solução?
Dividir o trabalho doméstico em casa é essencial, mas eu realmente não acho que é isso que irá mudar essa situação abusiva de dupla/tripla exploração a que o capital nos submete.
Concordo com Silvia Federici que a luta das trabalhadoras domésticas pelo salário é, ao mesmo tempo, uma luta contra o salário.
Nós queremos que o capital reconheça a nossa jornada de trabalho e nos pague por isso! Mas acredito que devemos lutar por um mundo em que o nosso afeto, o nosso cuidado com outro não se reduza a um salário. E para isso realmente ser possível, nós precisaremos imaginar um mundo para além do capital. Será que conseguiremos fazer isso?
Eu realmente não sei, mas tentei especular sobre essas questões que tanto me instigam e ocupam meus pensamentos no meu primeiro romance. O lançamento será em maio!
As obras dessa edição:
👁️ Patriarcado do Salário, Silvia Federici
👁️ O homem ilustrado, Ray Bradbury
👁️ Eu, Robô, Azimov
👁️ Admirável mundo novo, Aldous Huxley
Bjs e até a próxima edição ;)
Thais
Nossa, que texto incrível.
Adorei as reflexões.
Adorei as citações a Federici. Adoro ela, mas não conhecia esse trabalho especificamente.
É completamente bizarro pensar que, apesar de importante, a chegada da mulher ao mercado de trabalho foi apenas mais uma forma de exploração. Pensei sobre licença maternidade e ações do tipo. É evidente que isso é importante, mas é quase como dizer que a criança só precisa da sua atenção durante os primeiros seis meses. Toda conquista dentro do mundo capitalista é só uma forma de colocar panos quentes em problemas complexos.
Concordo com sua argumentação sobre a necessidade de pensarmos um mundo além do capital para resolver esses problemas. Confesso que não sei muito bem como, mas tenho certeza que não é impossível. Um dos grandes trunfos do capitalismo é ter nos ensinado que o mundo sempre foi assim, quando na verdade, em termos históricos, esse sistema até que é recente.
Há algum tempo atrás, não lembro para te dizer com exatidão, estava lendo o A origem da família, da propriedade privada e do Estado, do Engels, e lembro dele citar algumas sociedades que tinham padrões de parentesco diferentes da nossa. Por exemplo, não existia a figura da tia, porque se eu tinha um filho, todas as minhas irmãs eram consideradas mães do meu filho. As crianças, portanto, eram criadas de maneira conjunta dentro da sociedade. É claro que, na nossa sociedade, isso é impraticável. Do meu filho cuido eu sim, mas o seu filho vive na mesma comunidade que eu, então ele também não é minha responsabilidade? Ele também não pode afetar minha vida? Enfim, coisas a se pensar.
Como sempre, Thaís, seus textos mexem muito comigo. Você se escreve neles. E isso me emociona demais da conta. Enfim... Agora, me reportando ao seu texto, o que vou lhe dizer, Thaís, pode parecer um absurdo, mas ser mãe, cuidar da casa, filhos, marido e de um montão de outras coisas que envolvem esse imbróglio todo, deveria ser uma profissão, regulamentada por lei. E muito, muito bem remunerada, por sinal. Qual é o problema da mulher ser paga pelo Estado para gerar filhos, cuidar deles e educá-los? Quem, a não ser ela, estaria mais apto e capaz para fazer isso? O homem? A empregada doméstica poria filhos no mundo pela patroa? O problema não é só cuidar da casa, do filho e do marido. A grande questão é: se as mulheres, senhoras e donas de seus corpos [que infelizmente ainda não são], não quiserem gerar filhos, e aí! Que inteligência artificial vai substituir o organismo feminino - alimentar, gerar e cuidar de uma criança, mantê -la viva e saudável? Forte abraço, Thaís. Adorei seus questionamentos. Meus parabéns! Boa Noite 🌙.