Será que nós realmente queremos viver fora da jaula?
Sobre o medo de ser livre, feminismos, O conto da aia, um conto do Kafka e Paul Preciado
Acho que não há ninguém que não tenha um desejo genuíno de liberdade. Nas redes os discursos de seja você mesmo ou viva uma vida autêntica pipocam em frases prontas e copys de autoajuda.
Mas o que estamos realmente querendo dizer com esse eu autêntico, esse eu livre? Nós realmente o conhecemos?
Tão fascinada que sou por narrativas que tratam da opressão, percebi, com as minhas últimas leituras, que, na verdade, o exercício de pensar a liberdade como algo concreto, como algo que realmente poderia vir a ser, é extremamente vacilante e até perturbador.
Isso parece uma contradição terrível. Ora, se nos sentimos inegavelmente presos, enjaulados, pelas convenções sociais, trabalho ou normas identitárias, como podemos temer a liberdade? A liberdade não é tudo o que desejamos?
A verdade é que ser livre exige coragem.
Terminei a leitura d’O conto da aia, de Margaret Atwood. Uma história já bem conhecida pela popularização da série The Handmaid's Tale, mas que, para mim, ganhou novas camadas na leitura do texto literário onde o universo da República de Gilead aparece pela primeira vez.
No romance de Atwood a fascinante construção da narradora-protagonista traz um questionamento profundo sobre a condição paradoxal da liberdade.
Offred, a narradora protagonista, é uma aia. Uma mulher destinada exclusivamente à reprodução em um regime totalitário e religioso que retirou os direitos das mulheres — após uma guerra nuclear que deixou boa parte das mulheres estéreis —, hierarquizando-as em suas possibilidades de existência dentro de um rígido sistema de acordo com sua capacidade reprodutiva.
Acompanhamos o sentimento da narradora de sufocamento, regras, ritos e prisão. No entanto, ao longo da trama, Offred acaba em uma jornada de descoberta pela possível liberdade por influência e ousadia de uma de suas companheiras com o sugestivo nome de Moira.
Offred inicia um relacionamento peculiar com um homem do alto escalão do governo, quando deveria apenas gerar um filho dele, conhece movimentos de resistência ao regime e descobre a presença do sexo para além da necessidade de reprodução.
Porém, diante da possibilidade de construir uma existência fora de sua condição de serva, uma escrava para fins reprodutivos, ela parece resistir. Ao final da obra, não consegui deixar de me questionar: “Será que essa serva realmente desejava a liberdade?”.
Se nesse mundo distópico, onde os homens controlam a fertilidade das mulheres, a figura patriarcal do Comandante parece inicialmente perturbadora, com o desenrolar da trama esse lugar de poder vai se tornando quase um reduto ambivalente de segurança para a protagonista.
Offred parece o tempo todo medrosa, subserviente, comedida e passiva. Ela ousa atravessar as fronteiras, mas conhece mundos que lhe parecem ainda mais assustadores e violentos.
Regras, previsibilidade. O controle envolve algo de segurança que pode sim ser percebido como paradoxalmente bom.
Você olhava para o homem um belo dia e pensava: Eu amei você, e o tempo verbal estava no passado, e você se sentia tomada por um sentimento de assombro, por que era algo tão espantoso e precário e bobo de ter feito (…)
O conto da aia
Margaret Atwood
Há ainda um contraponto com o mundo antigo, antes de Gilead. A narradora lembra vagamente de sua vida antes de se tornar uma aia, a perda do marido e da filha com a imposição do novo regime. Ela não consegue deixar de refletir: antes da suposta opressão ser a regra, o que havia de liberdade nesse mundo anterior?
Parece que nenhuma.
A narradora nos mostra ainda mais um contraponto para o beco sem saída em que se encontra. Para além dos limites de Gilead, há alguma aparente possibilidade de libertação, mas associada ao trabalho pesado ou a uma vida errante. Há ainda zonas em que as mulheres aprenderam a usar o sexo e seus corpos para garantir alguns privilégios, como cigarros, bebidas e outros prazeres.
A narradora que só conhecia o mundo extremamente regulado e previsível, se percebe em pânico ao descobrir uma estranha possibilidade de alforria, sedutora, mas igualmente perigosa e exigente.
A liberdade então é isso? Esse sofrimento ainda mais terrível que um governo totalitário? Esse jogo de trocas pelo poder? Ela perplexa decide, então, retornar às suas origens privilegiadas de aia.
Margaret Atwood encerra seu romance distópico justamente com essa questão, ficando a critério do leitor interpretar o que o brilhante epílogo proposto pela autora pode ou não dizer sobre uma suposta rota de fuga presente na trama.
Liberdade é fugir? Fugir pra onde? É possível sobreviver fora da jaula?
Lendo Paul Preciado, em um discurso absolutamente arrebatador sobre o binarismo em que se assenta as práticas da psicanálise, fiquei pensando que há algo sobre a liberdade que nos escapa e que vai além do debate do controle social via norma de gênero.
Nesse discurso ele fala sobre a nossa capacidade, e coragem, de realmente conseguir atravessar fronteiras.
Preciado, a partir de sua experiência de construção identitária para além do binarismo estabelecido, encara de frente essa questão tão intricada que é saber sobre a liberdade.
Para ele a liberdade é monstruosa, pois ela está longe do saber/poder determinados. Ela é a alteridade desconhecida, aberrante, assusta e intimida. Mal sabemos o que ela é, pois poucos de nós realmente ousou conhecê-la.
A liberdade, diz Preciado, não é algo que está ali e precisa ser conquistado, mas é algo que precisa ser fabricado.
Digamos que não tive outra via, sempre assumindo que não se trata de escolher a liberdade, mas de fabricá-la. (…) A liberdade é um túnel que se cava com as mãos.
Eu sou o monstro que vos fala
Paul Preciado
Forjar uma identidade livre é de fato saber viver o incômodo e o perigo de estar fora da jaula.
Preciado começa seu discurso com o impactante conto do Kafka, Um relatório para uma Academia em que um macaco falante e talentoso relata a um grupo de acadêmicos sua transição de animal para um humano.
O que inicialmente poderia parecer um processo de evolução, nos moldes humanistas, irá se revelar como uma metaformose degradante e opressora: a subjetividade humana como uma prisão.
Não, liberdade eu não queria. Apenas uma saída; à direita, à esquerda, para onde quer que fosse; eu não fazia outras exigências; a saída podia ser apenas um engano (…) Da perspectiva de hoje me parece que eu teria no mínimo pressentido que precisava achar uma saída caso quisesse viver, mas que essa saída não devia ser alcançada pela fuga.
Um relatório para uma Academia
Franz Kafka
Pensando na opressão específica à identidade feminina e ao papel social imposto às mulheres em O conto da aia, a sensação que tenho é exatamente esta: qualquer escolha que fizermos estará atravessada pelo poder.
Offred não tem para onde ir. É impossível fugir.
Ela precisa saber fabricar sua liberdade, mas parece que, assim como ela, nós mulheres ainda estamos muito longe desse saber. Talvez por isso esse brilhante romance distópico de Margaret Atwood permaneça vivo no imaginário de tantas leitoras e já ganhou tantas adaptações.
Precisamos elaborar e reelaborar sempre essa história em um exercício criativo capaz de, como aponta Preciado, imaginar e fabricar a libertação.
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Os livros que inspiraram essa edição:
👁️ O conto da aia, Margaret Atwood
👁️ Eu sou o monstro que vos fala, Paul B. Preciado
👁️ Um relatório para uma Academia, Essencial, Franz Kafka
✨Para aprofundar a leitura d’O conto da aia sugiro o maravilhoso artigo da escritora Ana Rüshe: Margaret Atwood: de quanto o real supera a ficção.
💌 Uma edição da news sobre mulheres escritoras de ficção especulativa e maternidade.
Também assisti:
Treta: Uma história que deveria ser sobre uma eletrizante briga no trânsito mas se transforma em um relato fantástico sobre uma saída pra gente conseguir perceber o Outro. Vale conferir!
Estou lendo:
Para conhecer mais sobre o universo de Gilead e rever a série agora com as leituras feitas!
👁️ Os testamentos, Margaret Atwood;
Mais sobre maternidade e ficção científica feminista vale a leitura do conto As mães da ilha do tubarão, de Kit Reed, na antologia de ficção especulativa feminista, Irmãs da Revolução, organização Ann Vandermeer e Jeff Vandermeer
Para pensar alteridade e inteligências:
👁️Maneiras de ser, de James Bridle;
👁️Um antropólogo em Marte, Oliver Sacks
👁️Uma newsletter com uma curadoria especial para quem ama literatura fantástica: Lunário do Farol, de
Obrigada pela leitura!❤️
Um beijo e até a próxima edição! ;)
Thais
Excelente a edição, muito boa tua leitura com Preciado ❤️
Thais, adorei suas reflexões. Excelente news! Obrigada.