uma mãe que não deseja pega perpétua
sobre um conto de ficção científica feminista de Kit Reed👁 e o que é afinal ser uma mulher livre.
“Quem decidiu que precisávamos ser internadas? Quando começamos a ser um empecilho? Está em nosso destino que sejamos encarceradas, ou seria algo que fizemos? Ai, Deus, será algo que dissemos que eles não podem perdoar? Este é o terror e o mistério. Por que nos colocaram aqui, depois de tudo o que fizemos por eles.”
As mães da Ilha Tubarão, Kit Reed
A uma mãe é vetado o desejo. Quem é mãe sabe disso. Quando os filhos nascem, o mundo nos transforma em um ser imaculado, devotado às crias, nos tornamos perfeitas e infalíveis, nos desumanizam para nos transformarem em anjos enjaulados e castrados.
Você não pode mais desejar nada para além de ser mãe. Se sacrificar, cuidar, cuidar, cuidar e cuidar. Não ouse desejar nada para si, um momento de lazer, dormir uma noite inteira, desembaraçar longos cabelos que não seja os de uma criança - cortem seus cabelos! todos insistem – , passar batom, usar jeans...
Alguns nas redes chamam esses pequenos desejos de autocuidado, mas pra mim isso não é de fato um desejo. É necessidade básica. Comer sentada? Dormir 6h seguidas, cortar o cabelo como uma prisioneira? Fim da liberdade para se vestir? Desejo pra mim é o impossível, é aquilo que minimamente nos permite a fuga desse papel idealizado e encarcerador.
“Ao contrário da pneumonia, a maternidade é uma condição irreversível.”
As mães da Ilha Tubarão, Kit Reed
A mãe que não reaprende a desejar pega prisão perpétua. Foi isso que comecei a pensar ao ler o conto brilhante e devastador da escritora de ficção científica feminista, Kit Reed, na coletânea Irmãs da Revolução, Ann Vandermeer e Jeff Vandermeer.👁
Em As mães da Ilha Tubarão entramos em uma ilha fictícia com muitas mães agora eternamente prisioneiras. Elas foram encarceradas pelos próprios filhos após anos de dedicação, sendo agora desprezadas na velhice.
“Mães, não se iludam. Eles podem ser fofinhos quando são pequenos, seguir você para todo canto, fazer qualquer coisa para agradar, rir das suas piadas. Você trabalha duro para moldá-los, para fazer a coisa certa, mas esteja alerta. Não. Esteja avisada.
Eles não têm nada a ver com você.”
As mães da Ilha Tubarão, Kit Reed
Parece cruel. Mas é isso. Os desejos de nossos filhos não são os nossos desejos. Nós precisamos fazer a revolução que é uma mãe poder desejar seus próprios desejos.
Não o desejo dos outros, dos filhos, da família. A mãe que não é boazinha, uma santa, o anjo do lar.
Uma mãe que deseja é uma revolução. A mãe que não reaprende a desejar, a recuperar o desejo que lhe é constantemente negado, pega prisão pérpetua na Ilha Tubarão.
“Na Ilha Tubarão, não há redução de pena por bom comportamento. Aqui, existe apenas a prisão perpétua.”
As mães da Ilha Tubarão, Kit Reed
Há alguns meses iniciei uma disciplina especial no programa de pós-graduação em Cultura aqui na federal do Maranhão. Foi um passo muito importante pra mim, pois, desde que me tornei mãe, a insegurança e a sobrecarga do trabalho doméstico e trabalho fora de casa me fizeram pensar que eu jamais teria uma carreira acadêmica novamente. A produtividade na academia é algo assustador para qualquer um e eu sou só uma mãe cansada.
Mas esse ano tem sido um momento de muita esperança e otimismo pra mim e eu decidi que não desistiria facilmente dos meus sonhos e desejos. Me inscrevi na disciplina para me preparar para uma futura avaliação de Doutorado.
Não quis nem começar a pensar em tudo o que eu precisaria fazer para retomar uma carreira acadêmica: publicar artigos em boas revistas, frequentar eventos e seminários, apresentar comunicações orais... Pensei apenas no primeiro passo. Se eu começar aos poucos e devagar, pensei, quem sabe eu não consigo retomar, mesmo que em ritmo mais lento? No meu tempo virou meu mantra.
E assim me inscrevi na disciplina e comecei a frequentar as aulas. Mas um primeiro choque já me abalou bastante. O movimentado Centro de Ciências Humanas da Ufma, repleto de música, poesia e arte era exatamente o mesmo de quando fiz minha graduação e mestrado, no entanto com uma significativa diferença. Os jovens que ali estavam tinha uma pele bem mais radiante que a minha e ao falarem comigo não hesitaram nem um segundo de me chamar de senhora.
Eu fiquei perplexa no primeiro dia de aula. Um deles, muito gentil, me explicou para qual auditório eu deveria ir, não sem antes me chamar de senhora. A senhora vai por ali... Senhora, eu?
Confesso que já fui chamada de senhora em outras ocasiões, mas ali, naquele lugar, doeu. Frequentei aqueles corredores há mais de dez anos quando uma versão minha, mais jovem e desimpedida que a de hoje, jamais se sentiria insegura e não pertencente àquele espaço. Fiz meu mestrado ali e concluí com toda a liberdade que uma jovem estudante poderia ter. A sensação de liberdade perdida e o senhora pra lá e senhora pra cá começaram a me deixar um tanto paranoica.
Comecei a consumir loucamente tutorais de skincare no youtube para melhorar a minha pele e me sentir mais jovem. Não precisa nem dizer que já comprei um bom arsenal de antirrugas, retinol e o escambau para dar viço à pele... Pode até parecer um cenário de guerra contra as rugas, rs!, mas na realidade esse movimento tem sido bem alegre pra mim.
No fundo eu sei que os produtos de pele são apenas uma desculpa para uma nova versão de mim mesma que estou tentando criar. Sei que não sou mais aquela estudante sem horários que eu fui um dia, que podia estudar sem pensar nas contas a pagar, no trabalho acumulado, na febre do filho ou na comida para o jantar. Mas sei também que posso ser algo diferente ali. Uma nova versão minha, diferente e melhor.
Sempre que vou conversar com alguns colegas de turma e digo que fiz mestrado há dez anos, as pessoas são gentis e dizem: Nossa! Mas você parece tão nova! Nem parece que fez 30! Eu não consigo decidir se fico envaidecida com o elogio ou se me sinto mais ainda um peixe fora d’água.
Mulheres depois do 30, que são mães e donas de casa, podem estudar? Podem ainda almejar ter uma carreira acadêmica? Na minha cabeça eu coloquei que sim, nem que seja com receita da vovó para melhorar as rugas, meu batom e rímel que não abandono e uma boa dose de bom humor para ouvir os comentários.
“Acho que o pecado imperdoável é ficar velha”
As mães da Ilha Tubarão, Kit Reed
Mulheres que envelhecem são invisíveis. Depois que você faz 30, ou você está em casa, cuidando das crianças e fazendo comida ou você é uma doida que abandonou alguém pelo caminho — filhos, marido, família, para viver algum sonho egoísta, ter uma carreira…
É como se carreira e maternidade, profissão e afeto, fossem inconciliáveis. Para mim, não é nada disso. Eu sou mãe, gosto de escrever e de estudar, tenho meu filho, amores e afetos e acho que posso fazer tudo isso e muito mais. Nunca será perfeito, mas quem disse que precisa ser?
Na Ilha dos Tubarões, a mãe que amou demais, que fez o melhor que pode, morreu sozinha e desconhecida.
“A mãe desconhecida morreu sem trair suas origens; morreu sem renegar suas crenças; eu fiz o melhor que pude! Ela morreu sem remorsos e sem se arrepender. Morreu num estado de ignorância invencível, inocente da natureza de seu pecado desconhecido.”
As mães da Ilha Tubarão, Kit Reed
Não é nada fácil, confesso, mas me inspiro em várias mulheres que vieram antes de mim. Que têm suas famílias, seu afetos, amores e carreiras. Elas são a minha inspiração. Não como algo idealizado. Longe disso. Elas são mulheres reais, imperfeitas, elas desejam e falham... Recomeçam, deixam a petecar a cair…
Elas amam seus filhos, mas elas se priorizam antes de tudo, se amam para amar. Isso é algo muito mais humano para mim. Fico observando como elas fazem e pensando: como essas mulheres são incríveis, eu quero ser uma delas também!
“Está em nosso destino que é desse jeito, ou em nosso código genético? Nossas filhas enxergam seu próprio futuro entrando pela porta com os mesmos olhos amorosos e temerosos?”
As mães da Ilha Tubarão, Kit Reed
O que é maravilhoso nesse conto, uma espécie de alegoria distópica sobre a maternidade, é a possibilidade de fuga. No conto, as mães planejam fugir, atravessar o mar de tubarões que cerca a ilha.
Mas afinal o que é uma mulher livre? Sabemos realmente ser livres? Falei um pouco sobre liberdade e gênero nessa edição da news com O Conto da Aia e Preciado
👉Será que nós queremos realmente viver fora da jaula?
A liberdade é um aprendizado. Uma conquista. A gente precisa saber inventar a liberdade. O conto possui um desfecho pessimista na minha leitura. Parece ser impossível para as mães uma fuga.
“Esta noite, as mães da Ilha Tubarão executam sua fuga. Pelo menos, tentarão. Elas podem até conseguir, se a ilha for menos vigiada do que pensamos. (...) E se conseguirem nadar mais depressa que os tubarões vorazes...
Mesmo que elas consigam, não vai mudar muita coisa.
A maternidade não é a descrição de um emprego, é uma sentença perpétua.”
As mães da Ilha Tubarão, Kit Reed
Mas eu realmente acredito que a fuga é possível. Não uma fuga irresponsável, mas uma fuga para a descoberta e reinvenção da liberdade. Basta que reaprendamos a desejar novamente. Desejar é a nossa revolução! Apenas a mãe que não sabe desejar estará para sempre encarcerada nesse papel idealizado tão cruel.
Mães podem e devem ocupar todos os espaços. E a novidade maravilhosa é: eu consegui! Passei no Doutorado!❤️✨️
Tudo isso me deixa ainda mais alegre e orgulhosa da jornada que tive até aqui, e me deixa ainda mais empolgada sobre as diferentes maneiras de ser mulher que estamos vivendo nesses novos tempos! Que honra poder viver tudo isso!
Não é fácil, mas penso que vivemos um momento em que muitas mulheres incríveis abriram as portas para nós, mulheres como a própria escritora de ficção especulativa Kit Reed dessa edição, e não podemos ousar fechá-las. Isso seria a pior das traições.
Elas mataram os tubarões, nós só precisamos aprender a nadar e a respirar novamente.
Obrigada por ler até aqui e pela paciência com a pausa nessa news de uma mãe que se divide entre trabalho, maternidade e a paixão pela escrita!❤️
As edições da news ficaram paradas por um tempo, pois estava concentrada em realizar esse sonho! Mas agora estou de volta e quero compartilhar muito desse nova jornada! Irei estudar literatura e filosofia, especialmente distopias e utopias!
Os conteúdos por aqui continuam com muitas resenhas literárias, literatura fantástica e aspectos de escrita criativa com o Gabinete Fantástico!
✨No Gabinete Fantástico eu abro o gabinete de curiosidades dos grandes mestres da literatura fantástica para aqueles que curtem ler e escrever nesse gênero! Bora?
👉Veja a edição anterior do gabinete: 5 técnicas para criar contos de terror psicológico de tirar o fôlego
💌 Uma edição da news sobre mulheres escritoras de ficção especulativa e maternidade.
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Beijos e até a próxima edição⭐✨️,
Thais
Pa ra bé ns !!!
Que texto incrível! Obrigada por ele! Não sou mãe ainda, mas quero muito. Por muitos anos, dizia que não queria porque temia justamente o que você reporta que acontece: nos anulam, nos impedem de seguir sendo nós mesmas, nos impedem de desejar outras coisas para além dos desejos da prole. Mas ser mãe é uma revolução (ainda que exaustiva).
Parabéns pela aprovação no doutorado. Mulheres e mães se movendo tanto me inspiram demais! <3